PESQUISAR, VIAJAR, PEREGRINAR: um relato sobre as paisagens de dentro e de fora na busca por aquilo que resta
A destruição dos seres não significa que eles foram pra outro lugar. Eles estão aqui, decerto: aqui, nas flores dos campos, aqui, na seiva das bétulas, aqui, neste pequeno lago onde repousam as cinzas de milhares de mortos. Logo, água adormecida que exige de nosso olhar um sobressalto perpétuo.
Georges Didi-Huberman, Cascas
1.
Foi nos primeiros meses do ano de 1986 que eu soube que existia a morte. Meu pai me levara ao observatório de um amigo, fora da cidade, para ver passar o cometa Halley. Eu tinha 5 anos. Não foi tanto pela visão do cometa com seu rabo de fogo no meio da noite, ou por uma nova concepção de universo que talvez tivesse passado a existir na menina diante do imenso telescópio. Ainda me lembro de algumas sensações desse passeio: atravessar a cidade de carro; pegar estrada no meio da noite; estar excitada com o programa noturno; a imagem do pequeno observatório num descampado escuro; olhar o céu. Lembro-me também de ter ganho na época um livro que contava a história do cometa Halley. Mas me lembro, sobretudo, de ter sido esse cometa, em 1986, o que me trouxe pela primeira vez a ideia de fim. Meu pai me contara que o cometa passaria novamente na terra quando eu fosse velhinha. E me disse que ele e minha mãe não o veriam mais. O cometa se transformou, de imediato, na prova material da morte para mim. Dali em diante, uma sucessão de medos e pensamentos recorrentes povoaram meu imaginário, com a ideia da morte cada vez mais viva nele. Desde pequena perguntava: o que resta?, e, mais desesperadamente: vamos nos encontrar depois de termos morrido? Em uma madrugada em que se sentia triste e cansado, meu pai me respondeu: não sei.
Vinte anos depois, ele morreu. Era já madrugada quando minha família e eu atravessamos uma longa estrada rumo à pequena cidade onde ele seria velado e enterrado. O céu estava plenamente iluminado com uma lua cheia e leitosa, mal se viam as estrelas, mas havia a delicadeza das frágeis sombras das árvores no asfalto da estrada.
Meses depois, arrumando os armários e gavetas do meu pai, encontrei a fotografia do cometa Halley. Na frente, o cometa desce pelo céu, atravessando seu pequeno recorte de universo, e quase escapa com seu rabo de fogo pela margem de baixo da imagem. No verso, as inscrições feitas pelo fotógrafo, o amigo do meu pai, com dados sobre o cometa, o tempo de exposição e outros detalhes técnicos. Em 20 de março de 1986, durante 8 minutos, uma imagem se fez, portando para sempre o corpo do cometa, o corpo da menina pequena e o corpo perdido do pai.
2.
No filme Nostalgía de la Luz, de Patricio Guzmán, imagens do céu e do deserto se encontram e se confundem. O que vemos no céu, diz-nos o astrônomo, é o passado. O que se procura no deserto, dizem-nos aquelas mulheres, é o resto do ser amado. Tanto o céu quanto o solo estão povoados pelos mortos, por vestígios de outros tempos e outros corpos. O que vejo na fotografia do cometa Halley é o passado dentro do passado – já sendo ele mesmo, o cometa, não contemporâneo ao momento em que um obturador ficou aberto por 8 minutos engolindo o céu e sua imagem. A imagem do passado agora se faz presente – como parte do objeto encontrado na gaveta do morto; como imagem que agora eu mostro e que exibe um céu; como imagem que torna presente o pai e a filha. O que uma imagem mostra? A essa pergunta, uma resposta: a imagem mostra os olhos que a veem.
Eu poderia então convocar Georges Didi-Huberman ao texto, para com ele dizer: “O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha.” (Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p. 29). E, ainda com ele, afirmar que “o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois.” O que eu vejo, me olha. E esse olhar retornado vem de longe, de um absolutamente fora da imagem, fora do suporte, além de todos os seus arredores imediatos. A imagem me olha com o olhar de quem tudo sabe, de quem se lembra, de quem me conhece. A imagem é o meu olho. Ela intermedia presente e passado – e talvez mesmo futuro – para trazer, ao corpo-imagem diante de mim, o meu próprio corpo. Walter Benjamin diria que a aura é o poder da imagem de devolver o olhar. É no momento em que olhamos e somos olhados de volta que acontece a mágica da imagem, aquilo que torna único o que vemos.
Desde que eu olhei o céu na infância, lançada ao mais profundo desamparo, passei a procurar os mortos. Para que eu pudesse ver, sobretudo, a presença de algo no mundo, uma imagem, um memorial, nomes pronunciados, o minuto de silêncio. Do tremor que a descoberta me causou quando pequena, passando por aquela noite em que vi o meu pai morrer, até este exato momento, tudo se construiu em torno de uma pergunta: o que resta?
3.
Restam cidades. Estradas, florestas, estações de trem. Restam marcas no chão, marcas nas paredes e nos muros, corpos mutilados, cicatrizes profundas. Resta uma flor velha e murcha, uma carta escrita à mão, uma urna com terra e cinzas. Resta um corpo que se desfaz sob a terra, um banco de cemitério, o dever de cuidar do túmulo, retirar as tantas folhas do outono, regar as plantas ressecadas do verão. Resta uma mãe que chora, um filho órfão, restam casas vazias, cadeiras vazias, cidades vazias, países destroçados. Resta um álbum de fotos, objetos amados, restam lembranças doídas. Resta a ruína de um prédio, restam tiros nas fachadas, explosões marcadas no asfalto. Resta uma praça vazia. Restam cabelos, malas, canecas, óculos, retratos. Restam as marcas das unhas na câmara de gás. Restam cinzas humanas no jardim. Restam cascas velhas de árvores, restam pequenas flores que insistem em crescer em meio às valas comuns. Resta o tecido sintético da roupa misturado à terra. Resta o espaço esvaziado entre dois prédios. Resta o nome escrito na parede, resta o nome pronunciado em voz alta. Resta o silêncio. Resta a paisagem.
4.
Existe um mapa em que se pode ver a superfície do planeta, continentes, rios, mares, cidades, povoações. Nesse mapa, faço riscos, faço marcas, mostro percursos facilmente empreendidos em trem, carro, avião. Mas nesse mapa não cabe a forma como verdadeiramente experimentamos a viagem; o mapa falha. Como então desenhar as inúmeras camadas de uma cidade, nossos trajetos e nossos amores, nossas histórias, erros, errâncias, nossas quedas, escritas, fotografias, nossos medos, encontros, desvios, a nossa solidão? Como inscrever no mapa o desejo que nos move, que nos moveu até aquele lugar, que nos faz partir, que nos faz voltar? Como exibir o grau de estrangeiridade que sentimos em cada lugar, ou o pertencimento? Como mostrar em imagem a língua que muda, a linguagem que falha, o gesto tantas vezes trêmulo que enfim nos conecta ao outro?
Lembro-me então de Italo Calvino e dos relatos de Marco Polo para Kublai Khan, nos quais lhe contava das cidades invisíveis. É ali que encontro o meu mapa. O percurso pelo livro me faz notar que são inúmeras as cidades que cabem dentro de uma cidade – e da mesma forma que a imagem é fruto dos olhos que a olham, a cidade pela qual se caminha é aquela que o próprio caminhante faz, a cidade se produz no desejo do viajante. Por onde andar, o que procurar, o que olhar, como sentir. O que, do próprio viajante, habita a cidade estrangeira? Tal como a foto do cometa guardada por duas décadas, a cidade espera que a encontremos, que possamos nela ver o que não se faz inteiramente visível. Disse Marco Polo a Kublai Khan: "De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas." (CALVINO, As cidades invisíveis, p. 44). A essas perguntas, respondemos com o nosso próprio corpo lançado ao espaço. Ir em direção ao outro é virar-se a si, desdobrar-se em muitos. Viajar é assumir-se estrangeiro.
Mas, por outro lado, viajar é voltar para casa. É, no percurso empreendido em terra estrangeira, encontrar aquilo que habita a memória, a rua da infância, a casa dos pais, os amigos da escola. Viajar é ir, sobretudo, em busca daquilo que moveu o desejo do movimento, é percorrer um imenso caminho por terra, água e ar em direção ao próprio corpo. Marco Polo afirma ser Veneza, sua cidade de origem, o lugar tornado implícito em todos os relatos que produz sobre outras cidades, como se ela fosse sempre o ponto de partida para ver, ou o ponto a que se volta, depois de ter visto. Diante da pergunta lançada por Kublai Khan, questionando o fato do passado estar presente nas viagens do seu interlocutor, Marco Polo lhe explica que o passado do viajante muda à medida que ele prossegue a viagem. “Ao chegar a uma nova cidade, o viajante reencontra um passado que não lembrava existir: a surpresa daquilo que você deixou de ser ou deixou de possuir revela-se nos lugares estranhos, não nos conhecidos.” (CALVINO, As cidades invisíveis, p. 28). E eu diria que, também, aquilo que você se tornou, o que decidiu ir buscar, ainda que não pudesse a princípio nomear. A viagem é um movimento adiante que joga com os mais diversos tempos. A viagem é anacrônica, louca, e traz consigo todas as outras viagens já empreendidas. Falar de uma viagem é, sobretudo, falar do viajante. Um mapa de papel mostra a superfície visível do planeta e, para os olhos que podem vê-lo, também todo o labirinto espaço-temporal por onde o viajante se lança quando arruma sua mala e deixa aquilo que ele chama de casa.
5.
Posso logo começar a contar algumas histórias de cidades, como Marco Polo. Posso falar de Sarajevo, Moscou, Dresden, Saarbrücken, Oradour, Treblinka, Varsóvia. Posso apontá-las no mapa, com suas localizações precisas. Posso mencionar alguns fatos, posso oferecer dados oficiais. Mas não percamos de vista o essencial: cada vez que eu mencionar a palavra Sarajevo, estarei falando de uma tarde em que, olhando do alto a cidade, chorei de emoção. Ao falar de Varsóvia, estará presente o calor absurdo que fazia, e o fato de não conseguir andar pelas ruas depois do meio-dia. Falar de Dresden é contar das cascas de árvores que eu catava no chão. Moscou é a cidade mais limpa que já vi. Paris foi meu primeiro inverno. Berlim era a neve úmida que caía enquanto eu caminhava sozinha depois de uma conversa bonita. Madrid foi Guernica. Treblinka, a floresta.
6.
Viajar supõe ao menos três momentos: um antes; um durante; um depois, que poderia também ser dito como: o que imaginamos; o que lá vivemos; o que lembramos. Chegar a um lugar pela primeira vez é estar contaminado por tudo aquilo que habita a nossa imaginação, junto a expectativas, medos, fantasias. Tudo o que lemos, o que nos contaram, o que vimos em imagens, o que atribuímos ao lugar por mera especulação. E, ao voltar a uma cidade já conhecida, o que imaginamos agora é borrado pela lembrança da vez anterior, das tantas camadas da nossa própria história que já habita o lugar.
Falar sobre um lugar é falar, sempre e ao mesmo tempo, sobre mim. Sobre a experimentação por mim empreendida. Não é de outro corpo que falo, de outro olhar, de outro modo de estar. Tudo o que sou naquele momento, tudo o que me aconteceu até ali é parte constituinte do que vejo. É em nós, viajantes, que as mais diversas cidades se encontram, dialogam, partilham semelhanças, diferenças, histórias, memórias, imaginários. Se me perguntam qual o recorte da minha pesquisa, devo responder que é o meu corpo – por onde ele anda, o que ele vê. Diante de uma infindável coleção de monumentos e memoriais pelo mundo, foi assim que entendi de quais eu poderia falar. É com o corpo inteiro que decidi fazer a minha busca.
A viagem é uma montagem de tudo: todas as cidades pelas quais já passamos, os lugares que imaginamos, a origem, o pai perdido, os amores vividos, filmes, livros, pinturas, fotografias, o céu da infância, o cometa Halley, conversas com amigos, a dor de todas as mudanças, o desejo de mudar. As cidades são tramas – visíveis e invisíveis – pelas quais caminhamos. São redes, rizomas, labirintos, camadas. Cada viajante desenha seu mapa, inscreve rotas e caminhos, nomeia os lugares à sua medida. Cidades são como corpos – abertos, feridos, marcados, amorosos, doentes, excitados. O viajante desenha a si mesmo na busca que decide fazer. O mapa é o corpo do viajante.
7.
De todas as cidades que habitam uma cidade, a que escolhi ver é aquela que guarda e exibe os seus mortos. Nem todo mundo a vê. Projetando sobre o solo aquilo que vi no céu em 1986, procuro as marcas, os traços, os restos dos mortos, como estão presentes, como são chamados, convocados, exibidos, retirados, aniquilados, pronunciados, imaginados. O mapa da cidade dos mortos evoca imediatamente o céu, tudo o que nela se vê não está mais presente como antes, como corpo vivo, mas permanece via imagem, marca, lembrança. Permanece como aquilo que acessa nosso tempo presente, nossa passagem, nosso caminho atual. É agora que vemos, é agora que somos olhados. Os tempos dos memoriais são densos, complexos, abertos. Ver os mortos não é ver o passado – é ver o presente daquilo que outrora fora um corpo vivo. É ver, no tempo de agora, o que restou. O que busco é a presença do que desapareceu.
8.
Caminhando em Dresden, cidade alemã duramente bombardeada em fevereiro de 1945, encontro um delicado monumento em homenagem ao artista romântico Caspar David Friedrich, que vivera a maior parte da vida ali e se dedicou a pintar, via paisagem, o que existia dentro de si. O monumento mostra uma cadeira ao centro, ligada, pela proximidade e por linhas que se encontram acima dela, a um cavalete de pintura e a uma janela. A janela fala do mundo, o cavalete fala da imagem, a cadeira é o corpo do artista por onde tudo passa, onde tudo se encontra e se conecta, de onde tudo parte – olhar, gesto, desejo. As plantas do jardim começam a subir pelas superfícies do monumento, fazendo do espaço ao redor uma paisagem viva. À frente da cadeira, uma inscrição do artista:
O pintor não deve simplesmente pintar o que vê diante de si, mas também o que vê em si. Mas se ele não vê algo em si, então também deve deixar de pintar o que vê diante de si. (FRIEDRICH, in: LICHTENSTEIN, A pintura, vol. 5, p. 108).
Lembro-me então de uma reflexão do senhor Palomar, personagem de Italo Calvino que percorre o mundo e a vida comum tentando organizar, sistematizar e elaborar aquilo que vê:
Mas como é possível observar alguma coisa deixando à parte o eu? De quem são os olhos que olham? Em geral se pensa que o eu é algo que nos está saliente dos olhos como o balcão de uma janela e contempla o mundo que se estende em toda a sua vastidão diante dele. Logo: há uma janela que se debruça sobre o mundo. Do lado de lá está o mundo; mas e do lado de cá? Também o mundo: que outra coisa queríamos que fosse? Com um pequeno esforço de concentração, Palomar consegue deslocar o mundo dali de frente e colocá-lo debruçado no balcão. Então, fora da janela, que resta? Também lá está o mundo, que para tanto se duplicou em mundo que observa e mundo que é observado. E ele, também chamado “eu”, ou seja, o senhor Palomar? Não será também ele uma parte do mundo que está olhando a outra parte do mundo? Ou antes, dado que há um mundo do lado de cá e um mundo do lado de lá da janela, talvez o eu não seja mais que a própria janela através da qual o mundo contempla o mundo. Para contemplar-se a si mesmo o mundo tem necessidade dos olhos (e dos óculos) do senhor Palomar. (CALVINO, Palomar, p. 102)
Angustiado, tentando descobrir como olhar o mundo abstraindo-se de si mesmo, o senhor Palomar se dá conta de que o eu é de fato irredutível, não eliminável. Eu escolho o que ver, o que observar, o que procurar – muitas vezes por razões desconhecidas. Existe uma inevitável hierarquia que impele nossa atenção a determinado ponto do espaço e que suprime outros. O que vemos em uma imagem, como caminhamos por uma cidade, que presenças identificamos em um lugar são gestos do nosso próprio corpo como mundo – o mundo do lado de cá. Olhar e viajar supõem o encontro dos dois mundos, o de cá e o de lá, naquilo que se lança, naquilo que retorna, na partilha efetiva e afetiva do corpo do observador-viajante com o corpo de todo o resto – imagens, lugares, pessoas, tempos, narrativas, invisibilidades.
Durante os três dias em que estive em Dresden, visitei o monumento a Friedrich. Era verão, os dias queimavam de calor. Eu me sentava sob a sombra de uma árvore imensa que estava trocando de casca. Notei que por todas as cidades que eu passava durante o verão essa mesma árvore estava presente e cercada de cascas ao redor. Fui então tomada por essa presença delicada das peles das árvores no chão. Passei a olhar os memoriais que eu buscava também como peles soltas, peles mortas, mas visíveis, tangíveis e presentes. Era importante vê-las ali, as cascas. Elas me mostravam o tempo, o ciclo, a permanência. Permanência de algo que precisa se reorganizar para continuar existindo, que precisa mudar, se transformar, se perder para que algo continue.
9.
Na pesquisa, como nas viagens, tenho sido estrangeira. Mas levo em consideração o quanto há de familiar na estranheza de me ver outra. Não sou antropóloga, não sou artista, não sei mais desenhar. No entanto, sou doutora em artes, formada em desenho e pós-doutora em antropologia. Para além da angústia recorrente, que desejaria fazer desaparecer ao me nomear dentro de um lugar preciso, noto o quanto tenho espelhado viagem e pesquisa. Como se, para sair em busca, fosse preciso estrangeirizar-se em absoluto, lançar-se ao inteiramente novo na iminência de todos os riscos. E chega-me de longe a imagem de um homem a vagar.
Um pai de família, vivia em silêncio. Um dia manda construir uma canoa e com ela vai para o rio. De lá, não sai mais. Dias e noites, anos e estações, segue o homem a errar entre as duas margens, sem nunca atracar. A esposa desesperada, os filhos desolados, o pequeno povoado pronuncia a loucura do canoeiro. Ele não volta.
No mapa do viajante, a terceira margem do rio.
Terceira margem que é feita da própria matéria viagem, lugar de invenção, criação, lugar de montagem, de infinitas formas de organização, de transformação, de desaparecimentos e aparições. O viajante põe lugares diferentes e distantes em diálogo – é através dele que as paisagens se encontram, em que se cria uma terceira via, lugar outro, sem matéria visível e tátil, feita do ir e vir do corpo no mundo, no rio, dentro da canoa simples, sem beira, sem porto. E ecoa ainda a voz de Guimarães Rosa: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (GUIMARÃES ROSA, Grande Sertão: Veredas, p. 86).
Em seu curto e belo texto “Escavando e recordando”, podemos imaginar que Benjamin fazia alusão precisamente a esse meio, o meio da travessia. Ele dizia que é no solo atual que desenterramos os objetos do passado e que, nesse trabalho arqueológico da memória, coabitam os diversos tempos. Penso então nessa coabitação dos tempos como o meio da travessia, a terceira margem do rio. A relação que estabelecemos com a memória não se dá tão somente no passado, ou no presente, mas no escavar e revolver dos tempos, entre um e outro, justo no meio, no encontro, no que une e separa.
Didi-Huberman, no corpo que se lança, caminha, fotografa, escreve e imagina Auschwitz, propõe um olhar arqueológico que ponha em cena “o que vemos no presente, o que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido.” (DIDI-HUBERMAN, Cascas, p. 117). Diante dos restos, e nos arredores do nosso próprio corpo, presente e passado se convocam na elaboração de um tempo outro. A memória e o olhar trabalham arqueologicamente na constituição de uma narrativa temporal que fale do que vemos, do que sabemos, do que lembramos, do que não é dado a ver. Os fantasmas estão por toda a parte, com seus restos – visíveis e invisíveis – presentes na paisagem.
10.
Na abertura do filme Hiroshima mon Amour, de Alain Resnais, escrito por Marguerite Duras, o primeiro diálogo entre o casal – estrangeiros entre si – fala das marcas e restos da bomba atômica naquela cidade. Mostrando os dois corpos juntos na cama, ora úmidos, ora sob densa camada de cinzas, as imagens dos amantes se misturam com a aparição dos restos. Fotos, explicações e reconstituições – na falta de outra coisa, diz ela. Mas ele, o amante japonês, a coloca, e a nós, diante de um impasse dos olhos:
ELE
Você não viu nada em Hiroshima. Nada.
ELA
Eu vi tudo. Tudo.
Ela, a atriz francesa, relata ao amante o que vira: o hospital, o museu, o ferro retorcido, vulnerável como a carne, as fotografias, o calor, as notícias, as mulheres grávidas de monstros, o sofrimento, a pele humana, a praça queimando, os feridos, os sobreviventes, os homens inférteis, as chuvas de cinzas nas águas do Pacífico. Ele insiste: não, você não viu; você não sabe; você inventou tudo; você não é dotada de memória.
11.
Foi em 1820 que o poeta alemão Heinrich Heine disse, de forma tristemente premonitória, que, onde se queimavam livros, logo acabariam por se queimar pessoas. Pouco mais de um século depois, em 1933, a Alemanha viria a ser o palco dessa devastadora primeira cena, em pleno coração de Berlim. E a Polônia, logo a seguir, seria o cenário geográfico da construção alemã de seis campos de desumanização e extermínio. Ao final da Segunda Guerra, 125 anos depois de proferida a frase de Heine, o mundo descobriu, aterrado, que milhões de corpos haviam sido assassinados, destruídos, queimados, aniquilados.
Os livros são os corpos. As ruínas são os corpos. A cidade é um corpo. Cada marca de tiro na parede de um edifício, cada explosão de morteiro no chão da rua, cada cimento que agora veda uma pequena ou grande destruição, os prédios sendo pintados, as ruas sendo novamente calçadas, as pernas faltantes nas pessoas, os braços, a visão. Filhos órfãos, homens baleados, meninos sobreviventes. Lugares de memória sem marcas, uma rua qualquer, um pátio de escola.
12.
Evoco por fim a paisagem de uma viagem mais antiga, quando visitei o monumento invisível de Jochen Gerz em Saarbrücken, na Alemanha. Diante de uma imensa praça com seu chão de pedras, nada se via dos mortos, a não ser eles mesmos, feitos da mais pura ausência. Nada no memorial os mostra, nada os torna visíveis, a não ser uma narrativa pré-existente que nos diz que, dentro do solo, na face escondida das pedras, jazem os nomes de 2.146 cemitérios judaicos alemães que existiram antes da guerra. Caminhamos pela praça sobre nomes guardados, escondidos, silenciados. Caminhamos sobre os mortos. Foi Gerz, o artista que idealizou o monumento invisível, que nos disse que o verdadeiro lugar de memória são as pessoas, não os monumentos. É no gesto de busca e pensamento, implicando o próprio corpo no processo, que podemos nos tornar lugar, nos tornar memória, nos tornar a matéria viva necessária para que os mortos ocupem o espaço e a paisagem.
REFERÊNCIAS:
BENJAMIN, Walter. Escavando e recordando. In: _____. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995. p. 239-240.
_____. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: _____. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 103-149.
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
_____. Palomar. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017.
_____. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
DURAS, Marguerite. Hiroshima mon amour. Scénario et Dialogues. Paris: Galimard, 1960.
FRIEDRICH, Caspar David. Considerações acerca de uma coleção de pinturas. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline. A pintura - volume 5: da imitação à expressão. São Paulo: Editora 34, 2008. p. 105-109.
GUIMARÃES ROSA, João. A terceira margem do rio. In: _____. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 32-37.
_____. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
Nostalgia de la luz, 89 minutos, 2010. Direção e roteiro: Patricio Guzmán. Coprodução: França, Alemanha, Chile e Espanha.